quarta-feira, 30 de junho de 2010

Fabuloso destino

Não sei qual é o espanto por eu ligar a televisão sozinho. Qualquer menino com mais de oitenta centímetros que tenha força para fazer subir o elevador consegue carregar no botão pesado que o pai desliga para a luz vermelha não ficar a gastar. Depois, com o comando na mão, é só ir apertando.
Chato é quando não tiro o dedo do volume. Ou altero as configurações e fica tudo amarelo. De resto, tá-se. Como é que vocês costumam dizer? Canja, não é? Isso. É canja.
Não sei se já vos contei que cá em casa já vi fazer a canja de galinha... com frango. A avó não pode nem saber. Pois eu não gosto na mesma e, se quiser alguma coisa com galinhas, ponho aquela música das "doidas, doidas, doidas..." Claro que, para ouvir o que quer que seja, tenho de carregar no botão da extensão escondida atrás do resguardo do sapo, pôr o CD na aparelhagem já com luzinhas, e dançar.
Adoro dançar. Abano-me com a música da Amélie Poulain (tal e qual a do Ratatui) e balanço até terminar. Quando acaba, bato palminhas. Não me canso.
Também, se me cansar, ligo a televisão... Sim, sei fazer isso tudo. E mudar de canal. Por exemplo, quando a mãe está com a Anatomia de Grey, mudo para o So You Think You Can Dance. Ela fica zangada, mas eu é que sei o que me interessa.
Um dia destes concorro.

terça-feira, 29 de junho de 2010

FP50

O protector solar factor cinquenta deixa uma nódoa cor de laranja. Melhor, deixa 32 nódoas cor de laranja. Mais coisa menos coisa, é isso.
A mãe já lavou, a frio e a quente, à máquina e à mão. Já pôs supergel, tira-nódoas, lixívia, fairy, pasta dos dentes.
A minha T-shirt e a dela, as que usámos na praia, continuam a corar ao sol na bacia amarela.
Tendo em conta que enquanto houver lixívia na varanda eu não posso ir lá para fora, aguardo o envio de qualquer informação útil para o email dela. Ou isso ou um telefonema.
Agradecido.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Guincho

Imaginem uma panela de sopa. Ao lume, sem couvinhas, com espuma. Agora pensem que a panela é assim... mil vezes grande. E fria como um iogurte sem ir ao microondas. Confuso? Não! É assim o mar. Vi ontem. Enorme e friiiio!
Mal cheguei à praia, tratei de provar aqueles biscoitinhos esmigalhados. De fora parece terra, mas quando pisamos não há dúvida. São areias. Há no Dominó, há no Scala em Lamego, acho que até há naquele café da esquina onde o senhor me cumprimenta com um "bom dia, señor". Prefiro as línguas de veado, mas as areias também como.
Primeiro pus as mãos - aquilo cola-se - e lambi. A mãe histérica bateu palminhas nas minhas e deu-me as formas. Encheu as forminhas. Boa, fiz como faço com a papa. O dedo indicador, molho na areia e provo. Falta açúcar, mas come-se. Como bastante.
Levámos dois guarda-sóis, um deitado que faz vento, e outro que faz sol. O pai teve de voltar a casa, hora e meia sem praia, para buscar os xaropes. Odeio xaropes. Três qualidades, três colheres bem cheias. Tratei de cuspir tudo. Depois já não me apeteceu comer areia, nem gelar os pés na sopa.
Começou a fazer vento. Muito vento. Friiiiio! Tanto, tanto que havia uns papagaios a voar lá em cima. E uns meninos a tentar voar no mar agarrados a uns fios cá em baixo.
Quando os meus lábios ficaram roxos, o pai enrolou-me em duas toalhas para ficar quentinho.
Depois não me lembro de nada. Acordei e estavam eles a fazer um piquenique.
As cavalitas foi quando já não estava roxo.

sábado, 26 de junho de 2010

Portugal-Brasil

Querido seleccionador Carlos Queiroz,
Olá, tudo bem? Eu sou o Riq.
Não penses que te escrevo por causa das vacas. Sei que há muitas lá nos estádios, tenho pena de não as ver, mas o barulho não me incomoda. Quero contar-te outra coisa.
Ontem a selecção jogou com os amarelos à hora da festa. A mesa posta na creche, os biscoitos que tínhamos levado, e o jogo a começar.
Ora, eu tinha de fazer um número de extrema dificuldade: regar as meninas com uma gola de pétalas que estavam sentadas no tapete verde! Mas aconteceu que, vestido de jardineiro e com o regador na mão, só conseguia pensar em cantar o hino nacional, quando tínhamos treinado o "Jardim da Celeste"!
Está visto que me desconcentraste... Por isso, para a próxima, se fazes o favor, marcas o jogo para outra hora, sim?
De resto, ainda só sei dar chutos com a mão. Se estiveres interessado, liga ao pai, que ele trata da viagem.
Um abraço ao meu amigo Rui. É o da câmara.
E um aperto de mão ao Ronaldo.
Riq

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Teatro

Hoje há uma festa de final de ano lá no colégio. Avisaram a mãe para ela levar uma T-shirt a condizer com o fato de jardineiro, e estou certo de que faremos uma apresentação. De quê não me lembro. Nem sei se ensaiei.
Nesta altura do ano, mesmo na escola dos primos, há sempre espectáculos. E parece-me que é desta que vão tirar partido da minha veia teatral.
Os meus meses ainda se contam pelos dedos. E nem sei bem o que é um palco. Mas cada um tem de se safar como pode, por isso, tenho treinado em cima do pacote das fraldas, para ficar mais alto. E quase-quase me equilibro quando vou com a cabeça aos pés a agradecer as palmas.
No fundo, o que quero é a família toda a olhar babada para as educadoras – as únicas a saber as deixas – enquanto eu e os meus amigos estivermos a comer o alpista que semeámos na temporada passada.
Depois conto-vos como foi.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Polegarzinho

A minha pediatra tem os polegares grandes. Nunca lhe olhei para as mãos com cuidado, mas aposto que são enormes.
Nos últimos tempos, ela e a mãe parecem as melhores amigas. Durmo mal, toca a ligar à doutora. Tenho febre e tosse, vai e manda mensagem. Depois a doutora responde e elas não fazem outra coisa senão apitar os telemóveis uma da outra.
A mãe é um bocado influenciável. Vai daí, farta-se de comprar livros para aprender. Quando não compra, dão-lhos. Para o mano, tinha uns antigos, com páginas amareladas, onde umas senhoras de camisa às flores e saias compridas aprendiam as alegrias da maternidade enquanto os papás iam trabalhar. Agora não passa sem os três (!!) volumes do Mário Cordeiro, papa tudo o que é artigos do jornal sobre saúde nas crianças e não me assoa a ranheta sem perder meia hora na Net a avaliar o que é que aquela cor realmente significa.
Foi também na Net que descobri que os polegares estão a crescer por causa das mensagens.
Olha, lá está ela, mais uma que recebe. Um dia destes vão às compras juntas. Sem telemóvel. Elas e os seus polegares gigantes.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Borrachas

Ainda não recebo muito correio. Nem contas da água, nem vales de desconto, nem nada de cartões de crédito. O resto da malta farta-se de receber papelada. Eu não.
As páginas em branco das cartas que não servem para nada cá em casa viram lista de compras. Depois a mãe passa para o molesquinho, o pai, para o caderninho e eu para a parede. Deixo tudo marcado com recados meus, afazeres, coisas que, à falta de post-its, preciso de ir anotando.
Acontece que, desde que eu comecei a andar, o líquido que mais se gasta é o Sonasol e o limpa-vidros, para apagar, respectivamente, as dedadas e as lambidelas das paredes e dos vidros da varanda. Quando dou conta, já não há lá nada apontado.
Mais do que comprar detergentes, nos últimos dias vamos muito à farmácia. Trazemos tudo coisas horrorosas que, se fazem bem e me põem forte, bem podiam ser dissolvidas no regador e dadas a beber às plantas, que com o calor parecem mirradas...
Ontem o pai foi lá gastar dinheiro outra vez. E hoje anda tudo cansado, tudo adormece a brincar comigo, tudo com os olhos a meia haste. Sim, estou doente e quando parei de berrar já o Sol começava a nascer. Chorei muito. Estive triste. Já não sei muito bem porquê. Se não apagassem as coisas que vou apontando por aí talvez me lembrasse...

terça-feira, 22 de junho de 2010

Solstício

Dizem que ontem foi o dia mais longo do ano. Não dei por nada.
Durante a tarde pensei no Simão. Eu ajudo a estender a roupa, sabem, na varanda, e a avó diz que as plantas da mãe estão tão crescidas que os passarinhos acham que aquilo é uma floresta. Às vezes ouve-se piar.
No caminho de casa para a escola também costumo encontrar pombinhas. Quando têm fome, elas vão lanchar ao Dominó: é uma pastelaria onde um senhor que diz "obrigados" me empresta uns panfletos coloridos que gosto de deitar ao chão. Quando chego ao pé das pombas para ver se estão boas e tal, e se querem vir comigo brincar para a minha varanda, como sou assustador, elas fogem logo. Já vos contei que o pai quando me registou me pôs o nome "Riq das Neves"? Verdade! É só ver no meu cartão do cidadão. Há o Abominável é há o Riq, pois claro. O que mete medo aos pombos.
Elas não se explicam muito bem. E como fogem nunca sei se gostam da ideia. Aquela maneira de elas falarem soa-me a dor de dentes. A mim também me dói qualquer coisa. Desde madrugada. E tenho tosse. Aprendam: assim se faz um dia grande.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Terra

Cá em casa anda tudo a panicar com as férias. Para mim, está mais que resolvido. Sei de um sítio que cumpre todos os requisitos desta família exigente. Melhor, dois.
Querem bom, barato, com piscina rio ou mar. Mas será que ninguém se lembra da casa dos avós?! Uma ou outra, não interessa.
Regime tudo incluído, e com sorte ainda temos biscoitos. Se quisermos com piscina, os avós de Castelo Branco têm lá uma que rega a horta, com rãs e assim, e a avó de Lamego tem uma bacia daquelas grandes que a gente põe na marquise, com sorte passa férias na casa de Leiria, e com o tanque da laranjeira está o assunto arrumado.
Agora hotéis ao pé de malta que não conheço de lado nenhum, com praias cheias de terra que entram para a fralda e não deixam a malta brincar em paz? Para quê? Ainda tem de se pagar um dinheiro extra para alguém ficar connosco, e nem sequer nos comem a barriga!
Vocês devem andar muito ricos, devem. Se bem que há moedas para andar no carro do Noddy do café... se bem que não há. E se o problema são as fotos da praia, para meter no álbum, usem as do ano passado. Cheias de terra.

sábado, 19 de junho de 2010

Hábitos

Há mais de mês e meio que no chão da casa de banho há um penico azul com um coelho.
As minhas chupetas agora só aparecem mesmo quando eu estou chato e a querer dormir.
E quer-me parecer que o senhor de bata branca a cheirar a cigarros que me contou os dentes no centro de saúde andou a dizer à mãe que os biberões da noite têm de desaparecer.
Ora, quanto a isto, tenho umas coisas a dizer.
Primeiro: o meu rabo tem estilo com esta coisa da fralda. Não preciso nada de me sentar na bacia de plástico, fica ali muito bem só a enfeitar.
Depois, o Verão ainda nem começou e eu bem sei que quem leva a chucha é o Pai Natal. O Natal é em Dezembro, portanto, tenho tempo.
E se querem que eu faça boa figura a trepar àquela coisa no parque é bom que continuem a alimentar-me as vezes que eu pedir, com as tetinas que eu quiser, durante a noite.
Afinal, qual noite? Decidam-se: se bem que são quatro da manhã, se bem que são quatro da noite...
Há histórias muito mal contadas...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Viagem de finalistas

Mil e uma coisas que precisas de saber
antes de crescer (por Riq Afonso)
1.ª
parte
Número 1: Não usar a ranhura debaixo da porta da cozinha para meter cartas no correio quando o pai vai a sair. Os dedos dos meninos cabem mal debaixo da porta.
Número 2: Quando a mãe está vestida dentro da banheira a meter água fria nas mãos e nas calças de ganga, não, ela não quer que se entre para lá. Apenas significa que a máquina do café, mesmo avariada, deita água a ferver...
Número 3: Quando o mano não dorme em casa há dois dias e ainda não sabe fazer a papa sozinho, das duas, uma: ou está a viajar com os amigos... ou fartou-se de vez de alguém lhe rasgar os trabalhos da escola.
...
Bolas...

Milagres

Este é o Dário. Gosta de pacotes de lenços de papel. Parece fresco.
Anda sempre a fugir e a esconder-se. Debaixo dos móveis da casa de banho. Na garagem, ao pé das cebolas. No chão da varanda a entrar prà cozinha.
O Dário gosta mais do meu pai. A mãe grita quando vê o Dário, e diz "iarch!", e batebatebate com uma revista até o Dário desaparecer. O pai normalmente pega numa folha de papel e sopra para o Dário voar.
Quando eu era mais pequeno, não via as coisas assim. Um dia eles vieram e disseram à mãe e ao pai que tinham de me operar. Estavam com ar sério, a ver se podiam tentar.
Hoje gosto de soprar o cotão dos cantos. Vejo bem as bolas de sabão. Brinco com as migalhinhas, espalho os grãos de arroz. E conto as perninhas do Dário. Oito, de cada lado. Fininhas, sem sapatos.
Se não tivessem mais meninos, bem que essa malta podia vir ajudar-me a procurar as formigas que entraram para a mochila enquanto eu estava entretido. Afinal, aquelas lupas todas hão-de servir para alguma coisa...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Tatuagem

Sou alérgico a tatuagens.
Ontem fui fazer uma. Não é fácil.
Primeiro sai-se de casa cedo para ir meter pomada ali à clínica. Depois vamos beber café e dar uma voltinha. Quando voltamos, sentam-nos numa cadeira e apertam-nos o braço com um garrote com bonecos. Quando começa a andar tudo à nossa volta a sorrir muito e com livros e bonecos – "olha pràqui, não olhes prà-í" – é altura de começar a gritar.
Ao início ainda pensei que fosse uma pica, porque saiu tanto sangue tanto sangue que tiveram de guardar num frasquinho com o meu nome, mas eu sou forte, e eles depois lá aplicaram a tatuagem azul, com um urso e um leão, e andei todo o dia a mostrá-la na escola.
No final, é a velha história: fiz alergia e a mãe deitou fora. Por isso não tenho foto com ela. Mas fiz inveja. Com isso e com o "Diploma de Bravura" do laboratório de análises que trouxe para casa.
Quando for grande, talvez faça uma plástica...

terça-feira, 15 de junho de 2010

Pães

Parece que sou filho do padeiro. Quer dizer, o meu pai não é padeiro, mas a mãe às vezes atira umas frases prò ar, e eu, que já tenho quase muitos meses, ponho-me a pensar.
Os pezinhos dos bebés são sempre tão lindos cuchicuchi e tão perfeitinhos, não é? Não! Eu nasci com os dedos encavalitados. Quando era canito, costumava encontrar a malta mais cá em casa (que é onde andamos descalços e o pai põe aqueles chinelos verdes-alface). Como quem não quer a coisa, os meninos tinham por hábito reunir-se em cercadura para ver os dedos "tortos!" do bebé e os crescidos agarravam, e diziam que "é lindo na mesma", enquanto me alisavam e asseguravam que aquilo depois ia "ao sítio". Pois, não foi. A mim tanto me faz ter os dedos passados a ferro ou assim, desde que tenham a amabilidade de os morder e fazer cócegas de vez em quando.
Ora, se os meus pés não têm nada de igual, no cabelo, por exemplo, estou cada vez mais parecido com ele. O pai-pai! Este, cá de casa.
Ele tem caracóis, sabem, mas nao se pode comer os caracóis do pai, nem com cerveja nem com trinaranjus, porque sabem a pêlos. Eu sei, que já experimentei. É melhor esperar um bocadinho e pedir papa à mãe.
Isto dá que pensar, não dá? Enfim... nunca mais o avô volta para me levar a passear ali ao café! Podia ser que me cruzasse com o senhor que amassa as vianinhas...
É só uma dúvida que eu tenho.

domingo, 13 de junho de 2010

Poses

Estão a ver este móvel da cozinha? Já vos falei nele. Era o que tinha as batatas. Guardo lá os meus tachos e as forminhas, os livros que podem sujar-se com papa, e aquele saco colorido que está ali pendurado tem o pão alentejano que os avós do Cacém trazem para o pai fazer torradas.
A foto foi tirada depois do banho. Não dá para ver bem, mas na terceira prateleira há um cesto. A mãe achava que eu não chegava lá até vir arrancar-me uma amêndoa que eu tentava descascar com os dentes. Agora pôs lá uma abóbora, a chata. Cor de laranja. Tão, tão pesada que não só não dá para meter à boca como não consigo atirá-la ao chão.
E eu continuo a crescer. A ficar gigante. Tão alto como tudo que às vezes nem caibo na roupa.
Mas, sabem, naquele dia, eu até cabia nos calções iguais à camisola. Olhando bem, há ali qualquer coisa que não combina.
Pai, podemos tirar uma foto nova? É prò blogue.
Desta vez a mãe escolhe o pijama.

Quadras


A mãe liga a coisas simples. Pequeninas, de pouca importância, passageiras. Liga à marca da papa, à remela no olho, ao ranhito no nariz. À nódoa na camisola, à qualidade da fruta, às boas maneiras.
Liga também ao que os outros senhores pensam. O pai fica zangado com ela e diz que ela não deve ligar. Ela escreve o que diz que eu penso. Aí ele já gosta dela.
Às vezes sinto que lhes falta qualquer coisa que eles têm de ir à loja comprar. Qualquer coisa tipo fitinha do cinto do carro, estão a ver? Que eles apertam bem para eu não fugir.
Eu posso só ter meia dúzia de meses, mas já os conheço bem. Por exemplo, o pai adora vales. Daqueles da Fnac, que dão para os livros, para os meus e os dele.
Já ela é mais manjericos. Daqueles que não servem para nada, com uma quadra de amor.
É impressão minha ou a malta ali no café cheira a sardinhas assadas?

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Palavras

O pai e o mano saem a fugir, estou a brincar na janela, a mãe acendeu o fogão. "Vão indo que já lá vamos ter."
Vem a mãe, muda a fralda. Troca as calças, põe sandálias, agarra as chaves. Saímos disparados, chamamos o elevador. "Pega ao colo, mãe, quero ver o Riq no espelho." Pega ao colo, rés-do-chão, abre a porta, fecha a porta, volta a subir, entra em casa, desliga o fogão.
De volta à rua, sempre ao colo, assim é fácil andar a correr. O carro da mãe, azul. Olha a cadeira dos primos. Põe as fitinhas, aperta o cinto. Passa para o banco da frente, enfia a chave. Brum, brum, como eu gosto. Guia um bocadinho depressa, vai ter com o mano e com o pai. Digo "pá-pá", para confirmar. Depois caladinho, para não incomodar.
A rua. Um carro contra um poste, preto como o do pai. Está estragado. Um camião dos bombeiros, a luz azul da polícia a girar. Faz a rotunda, segue em frente, faz outra rotunda. Volta para trás, vê se o carro não é do pai. Carro da polícia, luzinha azul, carro dos bombeiros. Tudo outra vez. Não é o pai, seguimos caminho. "Pá-pá!" Segue a estrada que sobe. Vai mais devagarinho agora. Chega onde o pai estacionou o carro dele. "Pá-pá-pá-pá-pá-pá". O pai diz adeus, eu digo adeus, "Pá-pá". Ele apita com o carro dele. "Pó!-pá!-pó!-pá!".
Também, bolas!, a gente baralha-se com o balanço!

Tambor

A mãe trabalha à noite. Quando o pai sai de casa de manhã, ela deita-se a dormir no chão do meu quarto enquanto eu estou a brincar. Deixa-me desarrumar tudo das caixas, espalhar os carros, tirar os livros dos caixotes... É um sossego.
Quando me farto, gosto de brincar com a barriga dela. Bato a fingir de tambor, espreito a fingir de microscópio, agito a fingir de gelatina e pico, não é a fingir de nada, mas para ela acordar, porque me farto das brincadeiras com facilidade.
Um dia destes a mãe estava a dizer para não sei quem que já tinha fechado a loja. Depois percebi que a loja era a barriga dela e o fecho aquele risquinho por baixo do umbigo. Agora quando me ponho a espreitar pelo buraquinho já sei que não há nenhum mano a crescer lá dentro. Não há nem vai haver. Nesta casa já só entram meninos crescidos, a andar, e é pela porta. Primeiro porque não há quartos para mais. E segundo porque a barriga da mãe é uma óptima bateria.
Ela faz ginástica para tentar perder a barriga. E põe muitos cremes para não parecer gelatina. Oxalá não resulte.
Sabem, no fundo, acho que ela queria aquela história da loja aberta. Na escola, à hora do lanche, às vezes topo-a a olhar para mim com ar de "Gostava que aquele ali fosse meu..."
E não é que sou?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Molares

Querida fada dos dentes,
Eu sou o Riq. Tu não me conheces. Tenho uma almofada com uma girafa e com um leão, que a mãe troca pela do porco quando faz a cama de lavado.
Q
uero contar-te uma coisa: nós, os meninos mais pequeninos, temos um problema com os dentes.
Não dói, não te preocupes. A gente habitua-se a andar sempe a morder e vamos aguentando.
Mas custa. Há alturas em que temos febre, outras em que andamos tristes, e ainda para mais os crescidos passam a vida a tirar a nossa mão da boca quando ela até está a aliviar-nos.
Não penses que sou invejoso. Mas pelo que os primos dizem quando caem os dentes não custa nada!
Ora, parece-me – parece-me só, fada – que é uma questão de justiça. E que eu mereço uma moeda também.
Se achares bem, podes deixar debaixo do Inácio. É aquele parecido com uma almofada.
A mãe depois põe no mealheiro.

Fico à espera.
Obrigado.
Riq


terça-feira, 8 de junho de 2010

O mundo ao contrário

Os resguardos são para os fracos. Os lençóis para os friorentos. Gosto é de dormir de cabeça para baixo.
Uma destas manhãs acordei e não tinha dormido sozinho. Ainda estou cheio de pintinhas vermelhas que fazem comichão e a mãe diz que foram umas moscas que se chamam melgas que dormiram comigo e me picaram.
O pai estava um bocadinho zangado com elas e andou uma data de tempo com não sei o quê na mão à procura debaixo da escrivaninha para ver se tentava bater-lhes (ele diz que elas se escondem lá durante o dia para a gente não as ver, mas ele não as encontrou).
Lá fomos à farmácia, comprámos uma pomadinha nova para a comichão (o meu cesto do quarto tem mais variedade de cremes que o espelho da casa de banho) e depois preparámo-nos para a escola.
A mãe cheirava a bolas de neve. Sim, o pai gosta de bolas de neve e caramelos de fruta e guarda-os no armário dentro de frascos. Já a mãe usa as bolas nas gavetas, porque parece que aquelas moscas chamadas traças assim não comem a roupa.
Sim, definitivamente, aquela T-shirt da mãe cheirava a rebuçados, mas não fui capaz de lhe dizer. Toda a gente sabe como ela é comichosa com os cheiros. Não fosse ela querer ir buscar outra camisola... E eu podia querer um rebuçado. Bem... e toda a gente sabe que os meninos da minha idade ainda não podem comer doces...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Modelos

Na minha rua há pelo menos quatro meninos com o meu nome.
Quando estamos todos juntos no parque, a gente baralha-se. Tipo: "Riq, sai de baixo dos baloiços, que bates aí com a cabeça!" "Mas eu não estou debaixo dos baloiços!" E, trumbas!, levo com outro Riq em cima. "Ó, Riq, mas o que estavas a fazer na base do escorrega?" Muito confuso.
Quando alguém diz "estás a ver?, aquele menino tem óculos!", aí já sei que sou eu. Normalmente não há mais menino nenhum com óculos quando vamos passear ao parque.
As senhoras dizem "olha, tem óculos!", e algumas acrescentam "tu também vais ter uns assim, vês?", e há alguns meninos que gostam da ideia e outros não.
Alguns avôs também me perguntam "mas tu já usas óculos, pá?", e eu costumo olhar para a mãe para ela explicar àqueles senhores de óculos que eles devem trocar as lentes deles, porque é claro que os uso, está-se mesmo a ver.
Enfim, informação para os interessados:
óculos claros, com dois tons de azul. Modelo da Benetton.
Não se admirem se virar moda.

domingo, 6 de junho de 2010

Manifesto

Não gosto de hospitais nem de médicos. Mil vezes uma semana no isolamento da escola que uma tarde na sala de recobro. Aliás, ultimamente choro quando vejo batas brancas.
Além disso, percebam: odeio remédios. Xaropes. Granulados, picas e comprimidos efervescentes. Gotas para os olhos e para o nariz. Gotas para pôr na língua. Odeio sprays nasais. Comprimidos nunca provei, mas também não gosto. Vapores e aerossóis. Odeio.
Quero tudo em biscoitinhos, formato de papa, dissolvido no ar. Engarrafado, com sabor a água, absorvido no banho.
Sei bem quando tenho febre, escusam de vir meter-me o termómetro. Se me morde, coço, não quero cá saber de pomadinhas.
Podem levar-me à doutora, mas só porque me empresta o estetoscópio. E me dá um pauzinho daqueles dos gelados. E é simpática, vá. Não vou dizer que não gosto. Até gosto. Muito.
Mas escusam de falar dela, que continuo maldisposto. Ela até tem uns colares giros e as unhas pintadas e sorri muito. E adoro quando me fala a cantar...
De resto, não me desconcentrem! Tenho dito! Lá por não adoecer há mais de duas semanas, não significa que esteja frouxo.
Mas ocorre-me se não será tempo de voltar à pediatra. Não que queira. Mas exames de rotina e coisa e tal...

sábado, 5 de junho de 2010

Super-Homem

Sabem o que é uma apoplexia?
Hoje a mãe ia tendo uma. Não fui eu que disse, foi o pai. Que parecia.
A mãe é mais alta que o pai. E estava de costas. Entretinha-se na banca a descascar uma frutinha (blach!) ou outra coisa do género.
O pai andava a zarilhar. De gatas, ficava mais baixinho, mal o via, acho que apanhava frango e bróculos que eu tinha devidamente espingardado para o chão.
Como estava a comer, tinha um babete. Hoje era dos grandes.
Lembrei-me de virar o babete para as costas. Quando dei por mim, tinha uma capa, assim como a do Super-Homem. Apeteceu-me voar. Vai daí, pus-me de pé. Fiquei da altura da mãe.
Foi aí que ela teve aquela coisa.
Às vezes ainda fico mais alto...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Amigos

Na cama do pai e da mãe cabem seis Riqs de barriga para cima.
Na banheira há sempre espaço para mais um.
Na cozinha conto dois bancos a mais.
No quarto tenho duas camas. Roupa que dá para uns dez meninos.
Carros, não, só há pra mim. Mas cada carro da garagem está com a sua cadeira.
Tenho dois carrinhos de passeio, várias almofadas.
E a papa, essa sempre chegava.
Está mais que visto: estou farto de brincar sozinho e cá em casa cabe pelo menos mais um menino...

Trazemos um do parque, mãe?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Pontes

Ontem estive com o mano o dia todo. Sabem, eu aprendi a acenar adeus ao despedir-me dele na minha porta de entrada. Todos os dias, ele entra para o elevador e eu fico em casa com a mãe de pijama.
De manhã, quando tenho aqueles soninhos bons e o meu último biberão é depois das cinco, ao acordar já anda tudo a trezentos ou na pior das hipóteses nem encontro o mano antes de ele sair. Mas há alturas em que cá em casa faz tudo gazeta.
Ontem a despenteada da mãe veio acudir ao meu choro e ainda não havia barulho de tigelas de cereais, máquinas de barbear nem portas a bater (a da casa de banho do mano bate sem querer quando ele não acorda muito bem-disposto).
A mãe levou-me com um olho aberto e outro fechado ao frigorífico a buscar o leitinho, que eu grito é por outro biberão, e disse-me que eu ainda ia dormir mais um bocadinho e coisa e tal, e eu não dormi. Depois fez café, abriu o outro olho, e enquanto se arranjava para me levar a passear foi-me tirando das mãos todas aquelas coisas em que eu tenho o direito de mexer, tipo o rolo do papel higiénico, que gosto de desenrolar, e os cremes dela, que atiro, splash!, para dentro da sanita.
Enquanto a malta toma o pequeno-almoço, costumo encerar o chão com os bancos da cozinha. Aprendi com a Dona Céu (é uma senhora que limpa lá a casa da avó). É só andar com eles, pó-pó!, de um lado para o outro, arrastando e fazendo o mano passar-se com o barulho, e fica logo tudo encerado.
O mano ri-se sempre para mim quando me diz adeus da porta de entrada. Mas passa-se com facilidade. Nos últimos tempos não gosta de ser contrariado. Eu também não.
Farinha do mesmo saco.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Manutenção do apartamento

Querido senhor construtor,
Olá, tudo bem? Eu sou o Riq.
Quando vou de manhã para a escola o senhor costuma estar ao pé daquelas gruas todas a dar ordens aos camiões e pergunta sempre se eu estou "bom, pá!", e a mãe costuma sorrir. Está a ver? Sou esse Riq.
Talvez possa ajudar-me.
Alguém se lembrou de pendurar um saco de boxe no tecto do quarto do mano e eu não consigo lá dar murros. Pode por favor vir pô-lo ao nível do chão?

Preciso também de acabar com aquelas coisas de plástico das tomadas, porque assim os meus dedos não entram nos buraquinhos. Pode vir tirá-las também?
No caminho se puder trazer um escadote daqueles grandes, eu precisava dele porque meteram a caixa dos medicamentos em cima da sapateira...
Já agora, se tiver algum camião a mais, a mãe troca pelo carro dela. Não, não se importa.
E eu fico a aguardar. Entretanto vou lendo um livro.

Um abraço.
Riq

terça-feira, 1 de junho de 2010

Papéis

Eu e o meu pai temos um problema com papéis.
Ele adora papelada. Enquanto a mãe guarda cuecas na gaveta da mesinha-de-cabeceira, o pai põe papéis na gaveta dele. Com a mãe posso tirar tudo para o chão, voltar a meter lá dentro, voltar a tirar, deixar metade de fora, que nada se estraga. Mãe, desculpa, já não cabe, mas vês! não rasguei nada...
Na gaveta do pai, ai que não, que não posso mexer, e perco a pen da Internet e rasgo não sei o quê que ele precisa e me corto com a tesoura das unhas...
Outro exemplo: no guarda-fatos do mano e da mãe, há roupa, mochilas giras, lenços e adereços. Tudo coisas em que adoro mexer. No do pai, além da roupa, há revistas empilhadas. Quando tento ler algum artigo que me interessa, sobre reciclagem de fraldas ou coisa assim, cai logo tudo e ficam todos a olhar para mim como se eu tivesse aprontado alguma...
O pai leva também para a casa de banho livros e caderninhos para apontar as coisas dele. Quando eu quero levar os meus livros para a banheira ai não que não pode ser que se molham e chega cá mas é para te lavar as orelhinhas...
Não é por nada, pai, mas palpita-me que vamos ter problemas...