terça-feira, 31 de agosto de 2010

Moedas

Pouco tempo tinha passado de eu ter nascido, e já este meu avô de cá dizia que não via a hora de eu começar a andar pela mão dele a puxá-lo numa loja ou no supermercado, a pedir isto e aquilo. Dizia que não sabia como ia resistir sem me comprar o que eu pedisse.
A mãe, claro, que tem a mania de ter umas teorias, nessa altura trepava às árvores e engolia em seco antes de debitar uma história qualquer sobre as crianças não poderem ter tudo o que pedem e deverem habituar-se a prendas nos anos e pouco mais.
Claro que, se tivéssemos cá em casa levado esta história à letra, eu estaria verdadeiramente mordido pelos macacos, porque, que me lembre, ainda só tive uma festa de anos. Mas adiante.
Este avô de cá, dizia eu, gosta muito de compras. Às vezes compra às cinco mangas de uma vez só porque estão em promoção - e então andamos a comer manga a semana inteira -, tem uma colecção de cinquenta relógios despertadores, não vá algum variar, e dá muitas vezes uma moeda em troca de um brinquedo que quase-quase funciona, mas que um senhor se lembrou de levar para a feira para vender.
Este piano, por exemplo, que está na foto: parece que lhe falta uma tecla. Mas eu nem ligo. Se o resto fizer barulho, tá-se, e eu... adoro. Por essas e por outras é que me parece que, à parte alguns pormenores, sou bastante fácil de sustentar.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Fintas

Às vezes vai a sair, às vezes vai a chegar e tem de trabalhar. Vou ao quarto buscar não sei o quê para lhe mostrar e, trufas!, já lá não está.
Nos últimos tempos, parece o homem invisível, mas em versão mãe. Sempre a fugir, sempre a fugir.

domingo, 29 de agosto de 2010

Jacaré

Nos papéis ainda só faço rabiscos, mas há quem escreva histórias. Uma das preferidas da mãe é esta que conto a seguir:
Uma vez um jacaré ouviu dizer que o elefante tinha uns belos dentes de marfim. Dois: grandes, ENORMES. Toda a gente falava dos dentes do elefante, assim pesados, recurvos, cobiçados pelos caçadores para com eles fazerem adornos para as mulheres usarem.
Então o jacaré, que era muito estúpido, mas muito convencido de si mesmo, fez um trejeito de desdém e disse para o passarinho que lhe viera com a notícia: "Ora, ora. Ele só tem dois dentes. E então eu, que tenho a boca cheia deles?" Claro que o passarinho se surpreendeu. "Mas de marfim? Não sabia..."
O jacaré ficou furioso. "Pois não. Não sabes tu nem sabe ninguém, porque eu não ando para aí a mostrá-los, como o elefante! Mas a partir de hoje vocês vão passar a vê-los e a admirá-los, ora essa!"
E vai daí, veio a nadar até à margem do rio, pôs meio corpo fora da água, espapaçado na areia, escancarou a bocarra e ali ficou a exibir a dentuça.

Passou um dia, passou uma semana, passou um mês, e ele sempre no mesmo sítio, imóvel e de boca aberta, todo orgulhoso da exibição que fazia. E como não queria que ninguém que por ali passasse perdesse o que ele julgava ser o maravilhoso espectáculo da sua bela dentadura, nunca mais fechou a boca, nem mesmo para comer. Até que acabou por morrer de fome. (Guilherme de Melo, Os Leões não Dormem Esta Noite)
Normalmente acaba de ler e depois fica calada, assim, a olhar para mim. E dá-me os lápis e uma folha, para eu fazer uma história. E eu com ar de quem acabou de ouvir a bula dos supositórios para a febre. É que gosto de ouvir, sim. Mas estas histórias complicadas... não percebo tudo. Acho piada e tal, quando ela diz ENOOORMES, mas não percebo aquele olhar sem dizer nada, típico de estou aqui a falar e tu não fazes a mínima ideia.
Nã, assim não gosto. Ao menos nos três porquinhos, normalmente há palhaçada.

sábado, 28 de agosto de 2010

Via verde

Em casa não gosto de ver ninguém com a porta fechada. Agora que aprendi a dar aquele jeito aos puxadores, tenho mostrado à malta que não há segredos para ninguém. E que mesmo a casa de banho, até quando a mãe está ocupada, é um bom sítio para fazer um puzzle ou para enfiar aquelas formas nos buracos.
Claro que eu, por ser eu, posso entrar e fazer companhia, porque sou assim importante. Já o mano tem de ficar lá fora, o pai tem de esperar a vez dele e os avós nem tentam: vão lendo as revistas todas sentados no sofá até que ela se despache.
Quando vamos no carro e os outros estão parados - vêm quando passamos depressa por baixo das portagens? -, acontece o mesmo. Desiludam-se: não tem nada a ver com aquela caixa cinzenta que o pai lá tem colada, onde nem um boneco verde aparece. É tudo porque eu vou lá dentro.
Experimentem olhar para os carros em fila e ver se eu estou sentado em algum.
Não, pois não? Pois...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aragem

Ainda nem uma semana passou e já tenho saudades daquela gente: colo quando eu queria, papa onde eu queria, muita fruta e muito riso, tantos tombos sem dar conta. Árvores, verde, plantas, banhos ao ar livre...
Dizem que, desde que regressei, mal saio para o passeio pareço um gato a fugir da água, uma folha em dia de vento, um cão sem dono.
A questão não é gostar de ser livre, ter-me habituado à liberdade e ao campo ou então à falta de trela. É tão-somente o vento. A sério. Não tem corrido nenhum, sabem, faz imenso calor a caminho do parque. Portanto se andarmos muito depressa sempre há uma aragem. É essa a razão, pois bem.
Claro que também é giro ver os avós atrás de mim a correr, mas isso são outras histórias...

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Esclarecimento

Era esta a barriga de que eu falava ontem.
Hoje não tenho pintas.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Moscas

Naquela barriga redonda que eu escondo debaixo da minha camisola, às vezes aparecem umas coisitas que eu coço. Começa logo tudo a dizer que há melgas, não se liga a luz depois de o sol se pôr e o jornal passa a andar enrolado, assim parecido com o canudo do rolo de cozinha que eu gastei todo depois de cuspir a papa.
A maioria das vezes, já se sabe, anda tudo aos açoites às paredes, mas não há quem me mostre as devidas senhoras que me morderam, mesmo que digam "já foste" depois de uma cacetada num quadro qualquer.
Esta manhã, não se sabe de onde, apareceram umas pintinhas vermelhas quando me estava a vestir para ir para a escola. Posso deduzir que sejam uma reacção natural da minha pele ao padrão horroroso daquele pijama, que não há meio de se tingir sem querer na máquina com algum par de calças vermelhas-vivo, nem ficar com uma daquelas nódoas-que-não-saem e passar a pano do pó em três tempos.
Claro que ela foi logo procurar doenças com pintas aos livros todos. Mas eu tenho para mim que a coisa se resolvia assim como fez a avó de Castelo Branco na entrada da cozinha. Afinal, com o calor, andamos todos moles e com vontade de nos mordermos, não é só as moscas. E alcançar os puxadores das portas dá um trabalhão desgraçado. Assim como assim, seria mais fácil com fitas nas portas.